Janga recebe Ricardo Hoffmann na Casa Açoriana, e conversa apaixonadamente sobre Superfície. |
Lançado em
1967 pela Editora GRD RJ e reeditado em
1978 pela Edições Antares RJ, o livro “A SUPERFÍCIE” de Ricardo L. Hoffmann já completou meio
século desde sua primeira edição. Marco da literatura catarinense e nacional,
está a merecer uma reedição urgente que permita
aos leitores da nova geração, conhecerem uma das melhores incursões da
literatura nacional na restrita área da ficção intimista e subjetiva, voltada mais para a reflexão sobre questões
existenciais básicas de caráter universal, que para ações exteriores menos
relevantes.
O tema do livro são as transformações por que
passa a mente do jovem de ascendência alemã Heinz, à medida em que vai entrando em contato com
outras possibilidades vivenciais diversas daquelas ditadas pela mente rígida,
pragmática e prosaica do pai autoritário e castrador, que como o pai de “Cartas ao meu Pai” de Kafka,
assombra e paralisa o núcleo familiar de Heinz, constituído de uma mãe
submissa, uma irmã amedrontada e dois irmãos infelizes e frios como todos os
outros. O clima pesado, cheio de culpa,
sem afetividade nem alegria utilizado pelo autor para descrever o ambiente familiar
de Heinz, faz lembrar a atmosfera sinistra do filme “Fita branca” e o desespero existencial das obras de Lars
Von Trier. Trata-se de um mundo sem perspectiva nem esperança, pautado pela mediocridade
expressa nas inexistências pasmosas de cada
um dos infelizes personagens.
Buscando
preparar-se para um concurso da marinha
sugerido pelo pai, para o qual Heinz não tinha a menor aptidão, o jovem procura
Beto, quase da mesma idade, e começa a
ter aulas de geografia e matérias congêneres. Os pais de Beto eram artistas
diletantes, que pintam por pintar aproveitando as horas vagas que sobram após o
exercício de seu trabalho principal. Beto da mesma forma pintava de vez em quando, mais como passatempo que como compromisso existencial. Heinz ao saber que seu amigo pintava, convida-o
para conhecer as pinturas (cópias de folhinhas) que fazia escondido do
pai. A partir dai, cria-se o único laço
de amizade deste ser solitário e sem jeito de lidar com as circunstâncias do
dia a dia.
No transcorrer
da narrativa, Hoffmann vai construindo, com tintas fortes e carregadas, um
grande painel expressionista acentuando contrastes exacerbados de luz e sombra,
distorções, detalhes e alusões metafóricas a “superfície de horrores que se
chama vida por onde correm, sempre presentes por baixo da superfície aparente
das coisas, o medo, a aniquilação e a
morte”. Essas imagens sucedem-se num ritmo cada vez mais dinâmico definindo a atmosfera sombria e perturbadora do livro. Diálogos magistralmente construídos onde o
autor desenvolve seus pensamentos e reflexões sobre morte-vida, arte como
proposta existencial de libertação e plenitude versus o mundinho familiar pequeno burguês com sua mesquinha
escala de valores, intercalam-se de forma
vigorosa e expressiva, induzindo o leitor a vivenciar uma profunda imersão na obra, lendo-a sem parar até chegar
ao trágico final. Final esse já pressentido por Beto, o narrador, que percebe através da observação aflita das pinturas que
Heinz começou a criar após sua volta do Rio de Janeiro, o quanto seu amigo estava
afastando-se cada vez mais da realidade que o cercava, entregando-se a mais
absoluta solidão e torturada subjetividade.
Esse
processo que o autor esmiúça no segundo
capítulo intitulado “O desenvolvimento mórbido”, já estava latente desde a infância de Heinz
mas eclode de maneira mais radical após seu retorno do Rio de Janeiro onde
ficou por dois anos servindo o exército e frequentando cursos na escola de
Belas Artes. Heinz volta a sua cidadezinha totalmente desencantado com o que descobriu,
confessa a Beto que “tinha conhecido a vida”.
A primeira
atitude que toma ao retornar é abandonar abruptamente o lar materno e ir morar num pardieiro onde
instala seu atelier improvisado em meio
a ruinas e escombros,“buscando fora de si, do espírito fecundado pela vida da
família até o limite do possível o resto, aquilo que a casa dos país não pode dar, porque não é mais o alimento, mas
a realização individual que vem depois do alimento precedendo a morte”.
Nas visitas de
Beto ao estúdio miserável de Heinz,
os dois conversam sobre o
processo da criação artística aprofundando o tema, definindo segundo uma concepção
romântica o que seria a arte, o artista
e o processo criador. Num destes
diálogos afirma Heinz: ”Uma tela é uma superfície. Debato-me na superfície dos
horrores que se chama vida e deixo que meus gestos sejam reflexos espontâneos
das impressões que ela me causa é só isso.” Mais adiante complementa: “Tudo é uma questão de medida, de intensidade.
E uma vez que se descubra a validade do princípio não sei porque não levá-la ao
extremo bruscamente, fazendo o tempo contrair-se e dando um salto (quando somos
atraídos a isso) diretamente dentro do objeto.”
As relações entre
vida e morte, luz e sombra, arte e vida
permeiam todas as páginas do romance.
Heinz ao
voltar a sua cidade e decidir viver plenamente sua liberdade representada pela criação da sua arte, afirma
para Beto que: “Tivera a coragem
miserável de começar a fazer aquilo que sonho em vão.”
Passando a
viver num barraco, dedicando-se
totalmente a sua arte, Heinz tornou-se a
vergonha do pai que mesmo alcoólatra mantinha seus pruridos burgueses e
envergonhava-se junto aos amigos quando
se comentava sobre Heinz. “Assim ele, este bicho absolutamente iníquo pelo qual todos deviam
sentir vergonha, uma vergonha coletiva- social, pois ele de uma forma ou de outra parecia mesmo
perdido para o mundo, para os próprios sonhos, ao mesmo tempo um aborto vivo
locomovendo-se num ambiente ultra
pessoal que criara de repente, rapidamente, de tormentos para os quais jamais
haverá repouso, fim e nem sequer houve começo.”
Heinz nas palavras do autor, passou assim após
ultrapassada a tempestade dos vinte anos a “viver ancorado abruptamente na baia
do desespero.”
Ricardo
Hoffmann criou com Heinz o personagem
mais completo e apaixonante da literatura catarinense, esse jovem angustiado em
busca da essência do seu ser e da arte que a expresse, pode ser colocado ao lado dos
personagens de Herman Hesse com sua procura radical do auto conhecimento e de um sentido mais profundo para a existência.
Na literatura catarinense
vamos encontrar um paralelo com HEINZ no Araldo, personagem inesquecível e pungente
do EVOCAÇÕES, prosa poética de Cruz e Sousa. No poema denominado
“Nirvanismos” Araldo, ‘peixe fora d ‘água’ desajustado e sem
lugar numa sociedade mercantilista prosaica e hipócrita, impossibilitado de conviver
com seres “de ventre cheio e cabeças vazias”,
afasta-se do convívio humano adentrando cada
vez mais na escuridão das florestas, onde como animal
solitário por todos desprezado acaba desintegrando-se, sumindo como miragem sem
deixar rastros.
Heinz vai
buscar na fria escuridão das águas barrentas do rio que atravessa a sua aldeia
o mesmo refúgio e a mesma paz que Araldo
foi buscar nas impenetráveis florestas. Paz, acolhimento e aceitação que
não encontraram entre seus iguais. Representação
simbólica das forças do inconsciente que ambos decidiram ouvir, tanto o rio como a floresta tornaram
possível para Heinz e Araldo, embrenharem-se cada vez mais profundamente nos poços e emaranhados de suas forças
intuitivas até desaparecerem por completo.
A grandeza
trágica de personagens como HEINZ, que
assumem intuitivamente os riscos existenciais da entrega aos seus sonhos em busca de sua liberdade, da
superação dos limites impostos pelo cotidiano prosaico, medíocre e mesquinho
proposto como padrão a todos de forma
cada vez mais inexorável, encontra nas páginas de “A SUPERFÍCIE” uma das suas
abordagens mais impactantes, brilhantes e bem arquitetadas.
A construção do livro é exata em cada detalhe. No capitulo
final intitulado “No Terceiro Dia”, a
atmosfera expressionista predominante em toda a narrativa chega ao paroxismo. Numa
cena do capitulo anterior, Beto presenciara a chegada de uma mendiga com transtornos
mentais que chega ao estúdio de Heinz onde costumava dormir segurando seu saco
de trapos. Essa cena digna de uma xilogravura de Goeldi, é um preâmbulo para o
que está por vir. Nas páginas finais, a
narrativa assume um ritmo frenético, quase cinematográfico, pela riqueza
de imagens e detalhes intercalados com a ação dos personagens que dirigem-se
para as barrancas do rio onde se supõe
que estaria o corpo de HEINZ desaparecido há três dias.
Com agilidade
de câmara e edição de um thriller de
horror e suspense, detalhes e cenas se
superpõem-se num clima de pesadelo. Numa
luz crepuscular que envolve os vultos dos personagens,
movendo-se entre a escuridão úmida da
vegetação e das barrancas ribeirinhas,
as águas barrentas do rio refletem as
lanternas de querosene recém acesas nas barcaças que deslocam-se com
varas e redes procurando em vão o suposto cadáver. Os trilhos do trem que tem que ser
atravessados para chegar ao rio, o movimento dos vagões manobrando, o apito do trem que se
aproxima, tudo se entrelaça numa atmosfera sinistra, digna do desespero e medo que se desprende das páginas sombrias do
romance “No Coração das Trevas” de Joseph Konrad.
Movendo-se
neste clima tétrico, o chefete da estação de trem, com seu boné encarnado e os galões dourados de seu uniforme, querendo
estender seus domínios até as margens do rio, ordena a seus subalternos que barrem o aceso de curiosos que tentavam se aproximar
do local para, segundo o chefe, “gozarem com o espetáculo da dor alheia”. Nos vultos
que movimentam os barcos está o próprio velho Holtz, pai de Heinz, de certa
forma responsável pelo que aconteceu, ou
se supõe ter acontecido, com o filho que já nem via mais, envergonhado por sua
decisão de viver para pintar o que lhe
desse na cabeça.
A certa altura
das buscas, com a noite chegando o pai diz : “Ele não está aqui. Fugiu da
cidade tenho certeza. É inútil continuar procurando no rio.” Ao que o chefe da
estação responde, falando o que
todos os presentes estavam achando: “-O
senhor desejaria que ele ainda estivesse fugindo do senhor como vinha
acontecendo, mas ele fugiu, refugiou-se definitivamente. Se fosse possível o
senhor o seguiria até o inferno e estaria sempre seguro de suas razões, de sua
justiça e de seu direito. É tarde demais para trazê-lo de volta. Nem o corpo o
senhor encontrará, nem sequer o corpo.”
Esse é o epílogo
dessa obra magistral que merece ser lida
por todos. Tratando de questões vivenciais,
aborda a dor do existir com a mesma perplexidade e paixão de Clarice
Lispector, refletindo sobre a criação artística, sobre o processo de construção
da obra de arte, sobre o quanto isso exige do criador,
contrapondo a liberdade, a criatividade, a poesia ao prosaico senso pequeno
burguês, que não está nem ai para
as coisas do espírito, Ricardo Hoffmann com um texto a altura dos grandes autores da literatura mundial, criou uma obra de
sentido universal, que além da sua qualidade
artística e literária, funciona como um dos mais contundentes libelos contra a
alienação do ser em relação ao sistema
e ao cerne de sua própria existência,
cujo sentido só ele pode descobrir e cuja plenitude só ele pode realizar.