Antecipando a comemoração dos
seus setenta anos de existência que ocorrerá em março de 2018, o MASC
presenteia o público catarinense com a mostra Sensos e Sentidos,
que reúne parte da coleção do casal Jeanine e Marcelo
Collaço. O conjunto das cento e vinte
obras selecionadas propicia uma significativa viagem por diferentes períodos da
história da arte, e tem como tema
central a figura humana interpretada dentro
de diferentes contextos históricos.
Através de uma montagem
inteligente, a curadoria definiu um espaço expositivo funcional, criativo e de extrema sensibilidade, permitindo que na harmônica
elegância do conjunto, as obras respirem sem interferir umas com
as outras, ao mesmo tempo que dialogam entre si . Alguns eixos e coordenadas criados no mapa estrutural da montagem a
partir do posicionamento das obras tridimensionais , estabelecem espacialidades dinâmicas, poéticas e sugestivas que fazem o
olhar oscilar de uma forma para outra,
propondo reflexões, destacando similaridades ou confrontos.
Autor: Eliseu Visconti |
Com ênfase na produção artística
do século XIX, e portanto nas figuras representadas segundo os cânones das academias de belas artes que
pontificavam na época, a mostra inclui também representações de outros períodos
que vão desde um magnífico retábulo gótico de madeira com relevos representando cenas do
novo testamento, até alguns exemplares do modernismo e do pós-moderno representado por obras de Lindote,
Paulo Gaiad, Rubens Oestroem e Schwanke.
Essa preciosa coleção que possui
varias peças que poderiam figurar no acervo de qualquer museu de arte do mundo,
começou a ser formada ainda na juventude do renomado médico Marcelo Collaço.
Frequentador do atelier de
Martinho de Haro enquanto ainda era
estudante, tornou-se seu amigo assim como de seus filhos Martim Afonso e
Rodrigo. Em certa ocasião, Marcelo foi
presenteado com uma obra do mestre, adquiriu outras e acabou tomando o gosto do colecionismo. Com um feeling natural para descobrir obras
relevantes, foi cada vez educando e aprofundado
mais o olhar, já por natureza
sensível, inteligente e perspicaz. Assim,
o que de início era o exercício do simples prazer de adquirir e conviver com as
obras, foi aos poucos transformando-se pelo acerto das aquisições numa da mais importantes coleções de arte do
Estado.
Frequentador assíduo de galerias,
ateliers e museus, Marcelo ficou amigo
de vários artistas, marchands, leiloeiros e colecionadores de todo o país.
Sempre atento, garimpando obras representativas que estivessem
disponíveis no mercado, com paixão, dedicação e zelo, formatou a coleção da qual fazem parte as obras
que o MASC está expondo até março do próximo ano.
Esse recorte obviamente não se
pretende completo, mas obras significativas de diversos períodos estão expostas,
propiciando uma rara oportunidade aqui em Santa Catarina para que estudantes, artistas e público em geral possam, através de um contato direto com as obras
originais da coleção, pesquisá-las,
apreciá-las e estudá-las com atenção.
A viagem começa pelo gótico, presente com um
magnífico retábulo de altar esculpido em madeira com cenas do novo testamento. O renascimento italiano está
representado neste conjunto por uma
pintura da ‘Virgem com o Menino e Santos’, de Giiovani di Pietro, da escola de
Perugino. Restaurada recentemente. A
apreciação dessa obra merece por si só várias visitas ao MASC.
A arte e consequentemente as representações da figura humana no período
medieval estavam atreladas a igreja
católica que impunha seus códigos e as suas regras de representação sacra.
Com a redescoberta da antiguidade
clássica no renascimento, a figura
humana passou a ser representada com
mais liberdade e o nú ressurge nas cenas mitológicas até obter autonomia da representação, tornando-se um dos
temas mais importantes de praticamente todos os períodos da história da arte que se sucederam.
No barroco, a política da contra reforma convoca novamente os artistas para
preencherem os espaços dos templos e
oratórios com figuras de santos e cenas
religiosas. Diversas esculturas desse período executadas em madeira ou terracota podem ser vistas na coleção. Destacam-se
dentre as belíssimas obras um São
Gabriel, uma Nossa Senhora de madeira, e um São Roque missioneiro. Esse
conjunto, exposto de maneira a formar os
vértices de um triângulo virtual, pela
iluminação e posicionamento das peças, cria um dos efeitos mais belos de toda
a requintada montagem do Sensos
e Sentidos:
Outro grupo que impressiona pela maneira como
foi exposto, é o conjunto formado por
uma série de pinturas sacras de diversos períodos, ladeando o espaço central que tem num lado um esplêndido crucifixo português de madeira, prata e marfim e de
outro um oratório recoberto de pinturas barrocas. Posicionados frente a frente,
criam uma tensão visual na linha que se
estabelece entre um e outro dos pontos focais. Interceptada por outra linha
virtual, sinalizada em sua extremidade por
uma bela escultura de Nossa Senhora, essa
impactante montagem das peças sacras, sugere, no cruzamento de seus eixos, o transepto da arquitetura religiosa, direcionando
o olhar para o ponto principal da cena que é Crucificado.
Distribuídas nestes e em alguns outros locais da mostra, essas
imagens barrocas com seu pathos e êxtases
místicos, fazem um contraponto com a
laicidade das representações artísticas dos outros períodos. São igualmente
notáveis duas pinturas sobre cobre de
pequeno formato representando Santa Luzia e o Êxtase de Santa Tereza, um
batismo de Cristo do Séc. XVI de Toussaint Dubreuil, um óleo sobre madeira de
Bartolomeo Passerotti Séc. XV e uma
entrada em Jerusalém da escola flamenga
do Séc. XVI.
Outra obra sacra que se destaca, é
um glorioso São Sebastião espanhol do século XVII, esculpido em madeira policromada.
Colocada logo na entrada da mostra, a direita de quem
entra, essa escultura pontifica no
espaço, expondo em sua silenciosa grandeza
a beleza e a dignidade do corpo humano desnudo, tão cultuada na antiguidade clássica, redescoberta
pelo humanismo renascentista e no momento, em nosso país, vilipendiada por
representantes de um retrocesso histórico que pretende impor a arte um retorno a
censura inquisitorial das trevas medievais.
As representações acadêmicas da
figura humana que predominaram no país após a chegada da missão francesa
trazida por D.João VI, integram o maior
conjunto da exposição que inclui obras de Henrique Bernardelli, Oscar Pereira
da Silva, Rodolfo Amoedo, Pedro Weingärtner, Pedro Américo, Belmiro de Almeida,
Aurélio Figueiredo, Almeida Júnior, e outros.
Algumas pinturas,
como a ‘Menina Pintora’, de Pedro
Américo, e o nú masculino de Eliseu Visconti destacam-se no conjunto de obras
que reúne retratos, cenas de gênero e estudos.
A série de desenhos de Victor
Meirelles, com estudos de trajes italianos, é um dos pontos altos da
mostra. O impressionante virtuosismo dessas aquarelas
comprova que, sem dúvida, esse artista catarinense foi o melhor
desenhista nacional no século dezenove.
Conjunto de aquarelas de Victor Meirelles |
Um retrato de Eliseu Visconti de
sua esposa Louise, com sua luz e pinceladas impressionistas, mostra como
Visconti soube compreender a essência desse movimento inaugural do modernismo.
Muito interessante também a figura feminina de autoria do artista negro Rafael Frederico. |
Várias pinturas de artistas
europeus abordando a figura humana como
tema estão incluídas na exposição. É o
caso das duas obras de Othon Friesz, professor do nosso maior modernista
Martinho de Haro. De Friesz estão expostas uma surpreendente Joana D´Arc e um
pequena tela tendo como tema ‘A Trapezista’.
Martinho, cujas obras constituem
um dos núcleos centrais da coleção de Marcelo, participa com vários trabalhos,
como o ‘Baile Rural’ e o ‘Tomador de Chimarrão’,
de sua fase de São Joaquim, ‘Mulher Sentada’,
de seu período de formação, uma cabeça de jovem, pintura de mulata com a
qual obteve um prêmio na academia, e um nú feminino reclinado, forte e expressivo que pode sem favor
incluir-se entre os melhores nús produzidos pelo modernismo brasileiro. São interessantes como documento
um estudo de modelo masculino sobre
papel feito na academia por Martinho, colocado
ao lado de uma sanguínea de Eliseu
Visconti com o mesmo motivo.
Com a técnica da sanguínea há também um auto-retrato de Ismael Neri. Uma
série de desenhos de Rodrigo de Haro em
branco e preto de sua fase influenciada por Beardesley expostos ao lado de duas pinturas de grande formato
que evocam a síntese da gravura japonesa.
Dão sequência as obras expostas a tela
de Aurélio Figueiredo ‘Dama na Rede’,’ Tropeiros’, de Malinverni, uma triunfal ‘Entrada de Constantino em Roma’,
litografia de Gerard Audran a partir Charles le Brun, o nú masculino de Eliseu Visconti, que serviu de capa para o convite da mostra,
além de muitas outras obras, todas merecedoras de atenção e interesse. O
ideal é que se faça mais que uma visita ao museu, pois cada trabalho solicita uma atenção
especial para poder ser fruído em toda a sua totalidade.
Autor: Elke Hering |
A escultura modernista está
representada pelos dois parceiros de Niemeyer, Bruno Giorgi e Ceschiatti. De Bruno de Giorgi há um delicioso fauno em
bronze e de Ceschiatti, uma figura feminina reclinada, que funciona como um dos
referenciais do espaço expositivo. Há também duas esculturas em bronze da
artista gaúcha Sonia Ebling. Elke Hering está representada por um belíssimo bronze com influência de Henry Moore, além de outra
escultura em metal e duas peças em
cristal.
Bruno Giorgi |
Num exemplo de consciência
cultural o casal Marcelo e Jeanine Collaço com magnanimidade, além da realização da mostra SENSOS E SENTIDOS que possibilita ao público acesso a seu precioso acervo, doou ao Masc uma importante obra de Eduardo
Dias, o nosso douanier Rousseau , que
faz a ponte entre a obra de Victor Meirelles e de Martinho de Haro.
Belo exemplo de cidadania que
Oxalá seja seguido por outros
colecionadores.
A Cultura Catarinense agradece.
Marcelo e Jeanine Collaço |
* Fotos das obras de arte da matéria são de autoria de Rodrigo Sambaqui.