Vista geral da mostra "Canto da Terra"
A cultura popular da grande
Florianópolis reúne hoje o mais expressivo conjunto de artistas naïfs da região sul do país. Intuitivos,
sensíveis e criativos, esses artistas refletem em suas obras a riqueza da
mescla das mais diferentes matrizes e etnias,
que contribuíram para formar a população litorânea do nosso Estado.
Criando suas linguagens a partir da percepção
do espaço onde vivem, revelam-nos suas visões de mundo com autenticidade,
poesia e forte sentimento telúrico. Praticando uma arte muito próxima das
genuínas fontes da criatividade e da vida, obtiveram reconhecimento nacional
devido a uma série de fatores, dentre os quais se destaca o papel fundamental
que o Centro Cultural Artes e Tramoias Ilhoas de Sto. Antônio de Lisboa,
exerceu a partir de sua criação em junho de 1985.
Neste espaço cultural, criado de
início especialmente para esse tipo de manifestação artística, esses artistas
tiveram a orientação, estímulo e apoio para desabrocharem seu talento e
para terem a importância de seu trabalho
reconhecida.
O incentivo às manifestações culturais de
matrizes populares norteou o trabalho da Casa desde seu início, pois foi
justamente a partir de um movimento de cultura popular que ela surgiu.
A ideia era não discriminar a
arte popular, colocando-a num gueto, mas sim colocá-la no mesmo patamar da arte
considerada ‘erudita’. Quando a
qualidade artística se faz presente, essas fronteiras se diluem e desaparecem.
Assim, a Casa Açoriana foi o primeiro espaço cultural em Santa Catarina a
colocar lado a lado obras provenientes do universo da cultura popular e obras
dos mais relevantes artistas plásticos catarinenses.
Peça de cerâmica de Adelina Medeiros, em homenagem a Casa Açoriana.
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Dona Adelina Medeiros, por exemplo, uma das
mais representativas figureiras, chegava a chorar inconformada com a
desvalorização do trabalho ao qual dedicava toda a sua existência. Certa
ocasião, ela me confessou: “- Janga, é tão triste a gente criar com tanta
dedicação e amor e as pessoas nem saberem nosso nome, pois só se fala dos
artistas das telas e nós somos simplesmente ignorados.”Lembro-me que na inexistência de
locais apropriados para expor sua produção, nossos figureiros tradicionais só
tinham como opção vender por centavos suas peças, que eram expostas no mercado, praticamente jogadas no chão ao lado de
panelas, peças de gesso etc.
Na ocasião, eu prometi que a Casa
Açoriana iria fazer de tudo para reverter essa situação, expondo as peças de
forma condigna com curadoria, boa iluminação e ambientação apropriada para
realçar as qualidades artísticas das peças, valorizá-las através de textos
críticos, divulgação na mídia exposições, etc.
A situação denunciada por Adelina
era a mesma enfrentada por praticamente todos os nossos grandes artistas
populares.
Provenientes em sua maioria de
classes sociais menos favorecidas, eles não tinham voz, sem acesso a mídia e
aos espaços culturais, sendo praticamente colocados à margem do circuito
artístico cultural da cidade.
Ademar Melo - Lanterna do Divino |
Ademar Melo já nem expunha mais, desanimado com a
precariedade das condições existentes. Com o surgimento da Casa Açoriana, voltou
a criar e permaneceu na ativa até os noventa anos, quando faleceu.
Antônio Machado, nosso maior
escultor em madeira, antes da Casa Açoriana existir vendia suas obras na garupa
da bicicleta de seu filho Toninho, que aos sábados ia de casa em casa em Cacupé,
mostrando as peças acondicionadas em caixas de sapato.
Antônio Machado - Vaca sendo ordenhada |
Destaque dentre os artistas que
expunham na Casa Açoriana, sua obra a partir dai, atravessou fronteiras
chegando a ser exposta no Museu de Arte de Brasília ao lado de Antônio Poteiro,
GTO e outros expoentes da cultura popular nacional. Hoje, suas obras integram
coleções de várias partes do país e do exterior. A Casa Açoriana, durante anos,
adquiriu toda sua produção, proporcionando-lhe uma velhice mais digna, uma vez
que tinha garantida mensalmente uma complementação de sua modesta aposentadoria.
Antônio Machado - Cavalo |
Todos esses artistas sem exceção,
afirmaram sempre que se não fosse a Casa Açoriana teriam parado de produzir há muito tempo.
Com esforços e sacrifícios e mantendo-se
a duras penas, esse espaço cultural movido a paixão e idealismo acabou sendo
reconhecido nacionalmente conforme atestam as centenas de matérias da mídia e
os depoimentos de visitantes. Pela relevância cultural e alcance da sua proposta, a Casa Açoriana foi incluída entre os quinhentos mais importantes pontos de
turismo cultural do país, pela revista VEJA. Esse reconhecimento da importância
da Casa Açoriana como vitrine do melhor da produção artesanal de referencia
cultural, fez com que fosse o único espaço catarinense citado por SIG BERGAMIN
em seu livro ADORO O BRASIL, onde ele faz um
levantamento do que há de mais requintado e autêntico no artesanato
nacional.
Com muito trabalho e dedicação de
toda uma equipe abnegada, a Casa Açoriana conseguiu muita coisa no sentido de valorizar a
produção de nossos artistas mais genuínos. Hoje, trabalhamos com mais de oitenta
fornecedores entre artesãos e artistas das mais variadas técnicas e segmentos.
Dona Adelina Medeiros tornou-se bem
conhecida e integra o mais importante livro publicado sobre arte popular
nacional, o “EM NOME DO AUTOR”, editado por pesquisadores da UNICAMP que,
através do nosso espaço, tiveram acesso a produção de nossos artistas populares
possuidores de uma assinatura própria em seu trabalho.
Pela primeira vez, a arte popular
catarinense foi incluída numa publicação de abrangência nacional hoje referência
básica sobre o tema.
Além de ADELINA MEDEIROS, foram
também incluídos nesta importante publicação: ADEMAR MELO, ANTÔNIO MACHADO, MARIA
CELESTE NEVES, JOÃO OLÍBIO, VALDIR AGOSTINHO, ETELVINA ROSA, CLAUDIO ANDRADE,
também lançado pela Casa.
Dona Adelina inclusive, quando aconteceu o encontro dos presidentes do MERCOSUL, teve, segundo ela, um dos momentos mais gratificantes de sua carreira: Ao ter suas peças expostas na sala reservada ao então presidente Fernando Henrique Cardoso, a quem presenteou com uma peça de sua autoria, enquanto participava do um almoço que o ITAMARATI ofereceu aos presidentes para o qual foram também convidados os artistas cujas obras a Casa Açoriana emprestou ao ITAMARATI, para serem expostas nos salas do Resort Costão do Santinho, onde foi realizado o histórico evento.João Olíbio, o mais ecológico dos
nossos artistas, sempre teve lugar de destaque na galeria da Casa Açoriana. Numa
certa ocasião, procurou-nos querendo desistir, pois as vendas estavam difíceis.
Sugerimos que além das colagens bidimensionais, fizesse com o mesmo material
objetos utilitários como luminárias. Ele seguiu nossa sugestão e o resultado
foi uma fase extremamente bem sucedida tanto artística como financeiramente. João
vendeu praticamente toda sua produção de luminárias.
João Olíbio - Ponte Hercílio Luz |
Outro artista que a Casa Açoriana
lançou e acompanhou em praticamente toda a sua carreira é Neri Andrade. Lembro-me
que, na época da criação da Casa, as galerias de arte do centro da cidade não
viam com bons olhos a arte Naïf. Com
o trabalho desenvolvido pela Casa Açoriana, as obras de Neri passaram a ser valorizados. Por nosso intermédio, passou a expor na galeria
de arte do Copacabana Palace do Rio, antes de o mesmo ser vendido aos novos
proprietários.
Neri hoje é um artista com um
mercado consolidado, sendo dos artistas catarinenses mais conceituados e
procurado por colecionadores. Uma obra sua foi adquirida pela comitiva de Mota
Amaral, em visita a Casa Açoriana, enquanto ainda era Presidente da região
autônoma dos Açores. Essa obra faz parte do acervo do museu de arte da ILHA
TERCEIRA.
Neri Andrade - Costa da Lagoa |
Em 1995 a Casa Açoriana realizou
a primeira mostra de arte catarinense no exterior. No “Palais de Glace” no bairro da Ricoleta, em Buenos Aires,
organizamos uma coletiva a convite de um jornalista argentino. Essa exposição
realizou-se no mesmo espaço onde acontece o Salão Nacional da Argentina. Neri
foi um dos destaques dessa mostra chamada “A Ilha em Buenos Aires”, que foi um
sucesso de público e crítica com artigos no El
Clarin, outdoors espalhados pela capital portenha e eventos paralelos que
incluíam músicos e escritores da ilha.
Essa mostra foi muito elogiada
pelo embaixador do Brasil em Buenos Aires, que recebeu os artistas para um
almoço na sede da Embaixada Brasileira.
Maria Celeste Neves, com seus
inesquecíveis bordados retratando toda nossa cultura popular, é outra artista
que, revelada pela Casa Açoriana, alcançou destaque nacional, assim como
TERCILIA DOS SANTOS, artista nascida na região oeste do Estado e que a Casa
Açoriana lançou organizando sua primeira individual e expondo suas obras que
hoje integram coleções em vários países. Quando conhecemos Tercilia, ela estava
expondo num restaurante. Praticamente desconhecida do público, ganhava a vida
como manicure.
Tercília dos Santos - acrílico sobre tela |
Com o tempo, Tercilia foi ficando
conhecida. Suas pinturas mereceram
varias páginas no livro sobre arte Naïf
brasileira editado pela Jaques Ardie, de SÃO PAULO.
Em 2014, a Casa Açoriana promoveu uma grande individual
intitulada ‘PRIMAVERA DE TERCILIA’ que obteve grande divulgação na mídia, sendo
capa dos dois principais cadernos de variedades do Estado. Foi também a Casa
Açoriana que indicou Tercilia para ser o tema de uma coleção primavera/verão de
uma conhecida grife catarinense de moda.
Recentemente, Tercília foi uma
das artistas que participou da série de documentários ALMA BRASILEIRA, dedicado
aos mais destacados artistas populares do país, que o CANAL ARTE 1 tem levado
ao ar nas noites de domingo para todo o Brasil. Um capítulo inteiro da série
foi dedicado a sua obra.
Assim como Neri Andrade, ela
também foi premiada numa das edições da Bienal Nacional de Arte Naïf promovida pelo SESC SP em
Piracicaba.
A última versão dessa bienal, ocorrida em 2016,
teve tamanha repercussão que foi reeditada de março a julho no SESC BELENZINHO,
da capital paulista. Essa Bienal de 2016, que entre mil e quatrocentas obras
inscritas selecionou cem trabalhos, incluiu uma pintura de Saulo Falcão, outro
artista revelado pela Casa, que expôs lado a lado de nomes como FLÁVIO DE
CARVALHO, GUIGNARD, CICERO DIAS, VOLPI e vários outros artistas que fazem parte
da história da arte nacional.
Saulo Falcão - Gado no Pasto na Neve |
Saulo é natural de Sto. Antônio,
diagnosticado como esquizofrênico na adolescência, já foi internado dezenas de
vezes, mas a Casa Açoriana acreditou no seu talento e estimulou-o. O resultado
aí está para ser conferido, através da sua obra. Ele também participa dessa mostra CANTO DA
TERRA, com a obra ‘Gado no pasto na Neve’ que foi selecionada e exposta na
Bienal Naïf.
Além das artes plásticas, da
escultura, gravura e cerâmica, a Casa estimula e apoia praticamente todas as
tradições artesanais de referência cultural. É o caso, por exemplo, da
tecelagem tradicional. Três famílias de Gravatal contam, há décadas, com nossas
compras mensais, que lhe garantem a continuidade da tradição herdada dos avós.
Maria das Rendas - Carro de Boi |
As rendas também foram sempre prestigiadas
pela Casa Açoriana que, em 2015, revelou, através de uma individual, o original
trabalho autoral de Maria das Rendas, outra de nossas artistas que faz parte da
mostra CANTO DA TERRA.
Quando a Fundação Franklin
Cascaes, através de sua superintendente, convidou-nos para organizarmos uma
mostra que assinalasse a passagem do dia que celebra o saber popular, e para inaugurar
sua nova galeria de arte, no vão central do mercado, vislumbramos uma excelente
oportunidade para mostrar ao público o alto nível que uma produção artística
pode alcançar, quando lhe é dada condições para desabrocharem o talento e a
capacidade criativa de cada um.
O trabalho que a Casa Açoriana tem desenvolvido nestas
últimas três décadas, cujo resultado de forma resumida evidencia-se no alto
nível alcançado pelas obras que formam essa mostra histórica, é uma clara
demonstração de quanto o apoio é fundamental para o artista desenvolver plenamente
as suas potencialidades.
Dividimos a curadoria da
exposição com Lena Peixer, que além de excelente artista tem demonstrado uma
competência inquestionável na gestão de espaços culturais.
A mostra CANTO DA TERRA, que
permanecerá aberta a visitação até o final de setembro, tem também a
participação da ceramista Osmarina, com uma deslumbrante montagem da procissão
de Passos. De Valdir Agostinho, que
participa com uma criativa e surpreendente instalação, de Manoel Pereira
escultor em madeira que estamos lançando e que vem preencher a lacuna deixada
pelo falecimento do nosso outro grande escultor popular, Antônio Machado. Manoel
esculpe personagens populares, carros de boi, duplas sertanejas, cavaleiros,
com um senso escultórico impressionante, é mais um artista do qual ainda
ouviremos muito falar.
Manuel Pereira - Carro de boi com família |
Além deles, Nei Batista de Souza
é outro artista participante. Nei é o mais requintado e criativo artesão na
técnica do papel machê. Seus trabalhos já mereceram mostra individual no MASC.
Ele foi um dos fundadores do “Mão de Pilão”, grupo folclórico que nos anos
oitenta fez renascer a tradição do boi de mamão na região de Sto. Antônio de
Lisboa.
Do “Mão de Pilão” surgiram o premiadíssimo
Boi de Mamão de Sambaqui e a própria Casa Açoriana que deu sequência aos
objetivos do grupo de valorizar nossas raízes culturais.
Os artistas populares são, por
sua natureza, avessos ao discurso, cantam cada um a sua maneira sua terra
natal, suas tradições, suas crendices, seus hábitos e costumes. Celebram sempre
a integração com a natureza e o meio ambiente. Através de suas obras, podemos
perceber a alma de um povo. Cenas, personagens ou narrativas inseridos numa natureza
idílica nos propõe uma reflexão sobre a necessidade de criarmos novas maneiras
de nos relacionar com a natureza, sem destruir o ecossistema que alimenta a
vida no planeta.
Presente na abertura da mostra, o
secretário municipal de Cultura sensibilizou-se com nossa proposta de criação
de um Museu de Cultura Popular na capital do estado que pudesse reunir todo esse precioso acervo.
Torçamos para que esse sonho se
realize, pois é fundamental para a identidade de um povo a existência de
espaços onde sua alma se revele e a reflexão sobre de onde viemos e quem somos
aconteça.
Ney Batista de Souza - avestruz |
Ney Batista de Souza - Boi de mamão |
Valdir Agostinho - Cavalo |
Valdir Agostinho - Cavalo |
Valdir Agostinho - Cavalo |
Osmarina - Procissão dos Passos |
Osmarina - Procissão dos Passos |
Ney Batista de Souza - Cavalo |
Artistas, organizadores e autoridades |
Maria Celeste - Estandarte em homenagem a Casa Açoriana |
Etelvina Rosa - Obra reproduzida no Livro "Em nome do AUTOR" |
Bom acho que tem um grande equivoco aqui,porque com certeza meu vozinho Antonio Machado ninguem vai substituir a nao ser meu pai Antonio Machado filho que continua fazendo seu trabalho mantendo o mesmo estilo de criacao e producao de suas pecas...
ResponderExcluirEliza
Oi Eliza, "preencher a lacuna" e "substituir" têm conotações bem diferentes. Eu quis me referir ao fato de que hoje temos um escultor em madeira a altura da obra do Seu Antonio Machado.
ResponderExcluirQuanto ao Toninho, é uma grata revelação mas temos que dar tempo ao tempo para que ele desenvolva sua própria linguagem autoral.
Nenhum artista pode ser substituído uma vez que eles possuem uma visão de mundo unica. É isso.