quinta-feira, 14 de setembro de 2017

CANTO DA TERRA - A EXPRESSÃO DA ALMA DE UM POVO E O PAPEL DA CASA AÇORIANA NO PROCESSO DE VALORIZAÇÃO DAS NOSSAS MAIS GENUÍNAS EXPRESSÕES ARTÍSTICAS

Vista geral da mostra "Canto da Terra"

A cultura popular da grande Florianópolis reúne hoje o mais expressivo conjunto de artistas naïfs da região sul do país. Intuitivos, sensíveis e criativos, esses artistas refletem em suas obras a riqueza da mescla das mais diferentes matrizes e etnias,  que contribuíram para formar a população litorânea do nosso Estado.
Criando suas linguagens a partir da percepção do espaço onde vivem, revelam-nos suas visões de mundo com autenticidade, poesia e forte sentimento telúrico. Praticando uma arte muito próxima das genuínas fontes da criatividade e da vida, obtiveram reconhecimento nacional devido a uma série de fatores, dentre os quais se destaca o papel fundamental que o Centro Cultural Artes e Tramoias Ilhoas de Sto. Antônio de Lisboa, exerceu a partir de sua criação em junho de 1985.
Neste espaço cultural, criado de início especialmente para esse tipo de manifestação artística, esses artistas tiveram a orientação, estímulo e apoio para desabrocharem seu talento e para  terem a importância de seu trabalho reconhecida.
O incentivo às manifestações culturais de matrizes populares norteou o trabalho da Casa desde seu início, pois foi justamente a partir de um movimento de cultura popular que ela surgiu.
A ideia era não discriminar a arte popular, colocando-a num gueto, mas sim colocá-la no mesmo patamar da arte considerada ‘erudita’. Quando a qualidade artística se faz presente, essas fronteiras se diluem e desaparecem. Assim, a Casa Açoriana foi o primeiro espaço cultural em Santa Catarina a colocar lado a lado obras provenientes do universo da cultura popular e obras dos mais relevantes artistas plásticos catarinenses.

                                  
  Peça de cerâmica de Adelina Medeiros, em homenagem a Casa Açoriana.
Dona Adelina Medeiros, por exemplo, uma das mais representativas figureiras, chegava a chorar inconformada com a desvalorização do trabalho ao qual dedicava toda a sua existência. Certa ocasião, ela me confessou: “- Janga, é tão triste a gente criar com tanta dedicação e amor e as pessoas nem saberem nosso nome, pois só se fala dos artistas das telas e nós somos simplesmente ignorados.”Lembro-me que na inexistência de locais apropriados para expor sua produção, nossos figureiros tradicionais só tinham como opção vender por centavos suas peças, que eram expostas no mercado,  praticamente jogadas no chão ao lado de panelas, peças de gesso etc.
Na ocasião, eu prometi que a Casa Açoriana iria fazer de tudo para reverter essa situação, expondo as peças de forma condigna com curadoria, boa iluminação e ambientação apropriada para realçar as qualidades artísticas das peças, valorizá-las através de textos críticos, divulgação na mídia exposições, etc.
A situação denunciada por Adelina era a mesma enfrentada por praticamente todos os nossos grandes artistas populares.
Provenientes em sua maioria de classes sociais menos favorecidas, eles não tinham voz, sem acesso a mídia e aos espaços culturais, sendo praticamente colocados à margem do circuito artístico cultural da cidade.

Ademar Melo - Lanterna do Divino
Ademar Melo já nem expunha mais, desanimado com a precariedade das condições existentes. Com o surgimento da Casa Açoriana, voltou a criar e permaneceu na ativa até os noventa anos, quando faleceu.
Antônio Machado, nosso maior escultor em madeira, antes da Casa Açoriana existir vendia suas obras na garupa da bicicleta de seu filho Toninho, que aos sábados ia de casa em casa em Cacupé, mostrando as peças acondicionadas em caixas de sapato.

Antônio Machado - Vaca sendo ordenhada
Destaque dentre os artistas que expunham na Casa Açoriana, sua obra a partir dai, atravessou fronteiras chegando a ser exposta no Museu de Arte de Brasília ao lado de Antônio Poteiro, GTO e outros expoentes da cultura popular nacional. Hoje, suas obras integram coleções de várias partes do país e do exterior. A Casa Açoriana, durante anos, adquiriu toda sua produção, proporcionando-lhe uma velhice mais digna, uma vez que tinha garantida mensalmente uma complementação de sua modesta aposentadoria.

Antônio Machado - Cavalo

Todos esses artistas sem exceção, afirmaram sempre que se não fosse a Casa Açoriana teriam parado de produzir há muito tempo.
Com esforços e sacrifícios e mantendo-se a duras penas, esse espaço cultural movido a paixão e idealismo acabou sendo reconhecido nacionalmente conforme atestam as centenas de matérias da mídia e os depoimentos de visitantes. Pela relevância cultural e alcance da sua proposta, a Casa Açoriana foi incluída entre os quinhentos mais importantes pontos de turismo cultural do país, pela revista VEJA. Esse reconhecimento da importância da Casa Açoriana como vitrine do melhor da produção artesanal de referencia cultural, fez com que fosse o único espaço catarinense citado por SIG BERGAMIN em seu livro ADORO O BRASIL, onde ele faz um  levantamento do que há de mais requintado e autêntico no artesanato nacional. 
Com muito trabalho e dedicação de toda uma equipe abnegada, a Casa Açoriana conseguiu  muita coisa no sentido de valorizar a produção de nossos artistas mais genuínos. Hoje, trabalhamos com mais de oitenta fornecedores entre artesãos e artistas das mais variadas técnicas e segmentos.
Dona Adelina Medeiros tornou-se bem conhecida e integra o mais importante livro publicado sobre arte popular nacional, o “EM NOME DO AUTOR”, editado por pesquisadores da UNICAMP que, através do nosso espaço, tiveram acesso a produção de nossos artistas populares possuidores de uma assinatura própria em seu trabalho.
Pela primeira vez, a arte popular catarinense foi incluída numa publicação de abrangência nacional hoje referência básica sobre o tema.
Além de ADELINA MEDEIROS, foram também incluídos nesta importante publicação: ADEMAR MELO, ANTÔNIO MACHADO, MARIA CELESTE NEVES, JOÃO OLÍBIO, VALDIR AGOSTINHO, ETELVINA ROSA, CLAUDIO ANDRADE, também lançado pela Casa.  
                 

Dona Adelina inclusive, quando aconteceu o encontro dos presidentes do MERCOSUL, teve, segundo ela, um dos momentos mais gratificantes de sua carreira: Ao ter suas peças expostas na sala reservada ao então presidente Fernando Henrique Cardoso, a quem presenteou com uma peça de sua autoria, enquanto participava do um almoço que o ITAMARATI ofereceu aos presidentes para o qual foram também convidados os artistas cujas obras a Casa Açoriana emprestou ao ITAMARATI, para serem expostas nos salas do Resort Costão do Santinho, onde foi realizado o histórico evento.João Olíbio, o mais ecológico dos nossos artistas, sempre teve lugar de destaque na galeria da Casa Açoriana. Numa certa ocasião, procurou-nos querendo desistir, pois as vendas estavam difíceis. Sugerimos que além das colagens bidimensionais, fizesse com o mesmo material objetos utilitários como luminárias. Ele seguiu nossa sugestão e o resultado foi uma fase extremamente bem sucedida tanto artística como financeiramente. João vendeu praticamente toda sua produção de luminárias.

João Olíbio - Ponte Hercílio Luz

Outro artista que a Casa Açoriana lançou e acompanhou em praticamente toda a sua carreira é Neri Andrade. Lembro-me que, na época da criação da Casa, as galerias de arte do centro da cidade não viam com bons olhos a arte Naïf. Com o trabalho desenvolvido pela Casa Açoriana, as obras de Neri passaram a ser valorizados.  Por nosso intermédio, passou a expor na galeria de arte do Copacabana Palace do Rio, antes de o mesmo ser vendido aos novos proprietários.
Neri hoje é um artista com um mercado consolidado, sendo dos artistas catarinenses mais conceituados e procurado por colecionadores. Uma obra sua foi adquirida pela comitiva de Mota Amaral, em visita a Casa Açoriana, enquanto ainda era Presidente da região autônoma dos Açores. Essa obra faz parte do acervo do museu de arte da ILHA TERCEIRA.


Neri Andrade - Costa da Lagoa
Em 1995 a Casa Açoriana realizou a primeira mostra de arte catarinense no exterior. No “Palais de Glace” no bairro da Ricoleta, em Buenos Aires, organizamos uma coletiva a convite de um jornalista argentino. Essa exposição realizou-se no mesmo espaço onde acontece o Salão Nacional da Argentina. Neri foi um dos destaques dessa mostra chamada “A Ilha em Buenos Aires”, que foi um sucesso de público e crítica com artigos no El Clarin, outdoors espalhados pela capital portenha e eventos paralelos que incluíam músicos e escritores da ilha.

Essa mostra foi muito elogiada pelo embaixador do Brasil em Buenos Aires, que recebeu os artistas para um almoço na sede da Embaixada Brasileira.
Maria Celeste Neves, com seus inesquecíveis bordados retratando toda nossa cultura popular, é outra artista que, revelada pela Casa Açoriana, alcançou destaque nacional, assim como TERCILIA DOS SANTOS, artista nascida na região oeste do Estado e que a Casa Açoriana lançou organizando sua primeira individual e expondo suas obras que hoje integram coleções em vários países. Quando conhecemos Tercilia, ela estava expondo num restaurante. Praticamente desconhecida do público, ganhava a vida como manicure.

Tercília dos Santos - acrílico sobre tela

Com o tempo, Tercilia foi ficando conhecida.  Suas pinturas mereceram varias páginas no livro sobre arte Naïf brasileira editado pela Jaques Ardie, de SÃO PAULO.
Em 2014, a Casa Açoriana promoveu uma grande individual intitulada ‘PRIMAVERA DE TERCILIA’ que obteve grande divulgação na mídia, sendo capa dos dois principais cadernos de variedades do Estado. Foi também a Casa Açoriana que indicou Tercilia para ser o tema de uma coleção primavera/verão de uma conhecida grife catarinense de moda.
Recentemente, Tercília foi uma das artistas que participou da série de documentários ALMA BRASILEIRA, dedicado aos mais destacados artistas populares do país, que o CANAL ARTE 1 tem levado ao ar nas noites de domingo para todo o Brasil. Um capítulo inteiro da série foi dedicado a sua obra.
Assim como Neri Andrade, ela também foi premiada numa das edições da Bienal Nacional de Arte Naïf promovida pelo SESC SP em Piracicaba.
A última versão dessa bienal, ocorrida em 2016, teve tamanha repercussão que foi reeditada de março a julho no SESC BELENZINHO, da capital paulista. Essa Bienal de 2016, que entre mil e quatrocentas obras inscritas selecionou cem trabalhos, incluiu uma pintura de Saulo Falcão, outro artista revelado pela Casa, que expôs lado a lado de nomes como FLÁVIO DE CARVALHO, GUIGNARD, CICERO DIAS, VOLPI e vários outros artistas que fazem parte da história da arte nacional.


Saulo Falcão - Gado no Pasto na Neve
Saulo é natural de Sto. Antônio, diagnosticado como esquizofrênico na adolescência, já foi internado dezenas de vezes, mas a Casa Açoriana acreditou no seu talento e estimulou-o. O resultado aí está para ser conferido, através da sua obra.  Ele também participa dessa mostra CANTO DA TERRA, com a obra ‘Gado no pasto na Neve’ que foi selecionada e exposta na Bienal Naïf.
Além das artes plásticas, da escultura, gravura e cerâmica, a Casa estimula e apoia praticamente todas as tradições artesanais de referência cultural. É o caso, por exemplo, da tecelagem tradicional. Três famílias de Gravatal contam, há décadas, com nossas compras mensais, que lhe garantem a continuidade da tradição herdada dos avós.

Maria das Rendas - Carro de Boi
As rendas também foram sempre prestigiadas pela Casa Açoriana que, em 2015, revelou, através de uma individual, o original trabalho autoral de Maria das Rendas, outra de nossas artistas que faz parte da mostra CANTO DA TERRA.
Quando a Fundação Franklin Cascaes, através de sua superintendente, convidou-nos para organizarmos uma mostra que assinalasse a passagem do dia que celebra o saber popular, e para inaugurar sua nova galeria de arte, no vão central do mercado, vislumbramos uma excelente oportunidade para mostrar ao público o alto nível que uma produção artística pode alcançar, quando lhe é dada condições para desabrocharem o talento e a capacidade criativa de cada um.
O trabalho que a Casa Açoriana tem desenvolvido nestas últimas três décadas, cujo resultado de forma resumida evidencia-se no alto nível alcançado pelas obras que formam essa mostra histórica, é uma clara demonstração de quanto o apoio é fundamental para o artista desenvolver plenamente as suas potencialidades.
Dividimos a curadoria da exposição com Lena Peixer, que além de excelente artista tem demonstrado uma competência inquestionável na gestão de espaços culturais.
A mostra CANTO DA TERRA, que permanecerá aberta a visitação até o final de setembro, tem também a participação da ceramista Osmarina, com uma deslumbrante montagem da procissão de Passos.  De Valdir Agostinho, que participa com uma criativa e surpreendente instalação, de Manoel Pereira escultor em madeira que estamos lançando e que vem preencher a lacuna deixada pelo falecimento do nosso outro grande escultor popular, Antônio Machado. Manoel esculpe personagens populares, carros de boi, duplas sertanejas, cavaleiros, com um senso escultórico impressionante, é mais um artista do qual ainda ouviremos muito falar.

Manuel Pereira - Carro de boi com família
Além deles, Nei Batista de Souza é outro artista participante. Nei é o mais requintado e criativo artesão na técnica do papel machê. Seus trabalhos já mereceram mostra individual no MASC. Ele foi um dos fundadores do “Mão de Pilão”, grupo folclórico que nos anos oitenta fez renascer a tradição do boi de mamão na região de Sto. Antônio de Lisboa.
Do “Mão de Pilão” surgiram o premiadíssimo Boi de Mamão de Sambaqui e a própria Casa Açoriana que deu sequência aos objetivos do grupo de valorizar nossas raízes culturais.
Os artistas populares são, por sua natureza, avessos ao discurso, cantam cada um a sua maneira sua terra natal, suas tradições, suas crendices, seus hábitos e costumes. Celebram sempre a integração com a natureza e o meio ambiente. Através de suas obras, podemos perceber a alma de um povo. Cenas, personagens ou narrativas inseridos numa natureza idílica nos propõe uma reflexão sobre a necessidade de criarmos novas maneiras de nos relacionar com a natureza, sem destruir o ecossistema que alimenta a vida no planeta.
Presente na abertura da mostra, o secretário municipal de Cultura sensibilizou-se com nossa proposta de criação de um Museu de Cultura Popular na capital do estado  que pudesse  reunir todo esse precioso acervo.
Torçamos para que esse sonho se realize, pois é fundamental para a identidade de um povo a existência de espaços onde sua alma se revele e a reflexão sobre de onde viemos e quem somos aconteça.

Ney Batista de Souza - avestruz

Ney Batista de Souza - Boi de mamão

Valdir Agostinho - Cavalo 
Valdir Agostinho - Cavalo 


Valdir Agostinho - Cavalo 

Osmarina - Procissão dos Passos

Osmarina - Procissão dos Passos

Ney Batista de Souza - Cavalo

Artistas, organizadores e autoridades

Maria Celeste - Estandarte em homenagem a Casa Açoriana

Etelvina Rosa - Obra reproduzida no Livro "Em nome do AUTOR"

2 comentários:

  1. Bom acho que tem um grande equivoco aqui,porque com certeza meu vozinho Antonio Machado ninguem vai substituir a nao ser meu pai Antonio Machado filho que continua fazendo seu trabalho mantendo o mesmo estilo de criacao e producao de suas pecas...

    Eliza

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  2. Oi Eliza, "preencher a lacuna" e "substituir" têm conotações bem diferentes. Eu quis me referir ao fato de que hoje temos um escultor em madeira a altura da obra do Seu Antonio Machado.
    Quanto ao Toninho, é uma grata revelação mas temos que dar tempo ao tempo para que ele desenvolva sua própria linguagem autoral.
    Nenhum artista pode ser substituído uma vez que eles possuem uma visão de mundo unica. É isso.

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