sábado, 18 de novembro de 2017

SENSOS E SENTIDOS, no Masc - Uma Enriquecedora Viagem pela História da Arte.



Antecipando a comemoração dos seus setenta anos de existência que ocorrerá em março de 2018, o MASC presenteia o público catarinense com a mostra Sensos e  Sentidos,  que reúne  parte da coleção do casal Jeanine e Marcelo Collaço.  O conjunto das cento e vinte obras selecionadas propicia uma significativa viagem por diferentes períodos da história da arte, e tem  como tema central a figura humana interpretada  dentro de diferentes contextos históricos.
Através de uma montagem inteligente, a curadoria definiu um espaço expositivo funcional, criativo e   de extrema sensibilidade,  permitindo que  na harmônica  elegância do conjunto, as obras respirem sem interferir  umas com   as outras, ao mesmo tempo que dialogam entre si .  Alguns eixos e coordenadas    criados no mapa estrutural da montagem a partir do posicionamento das obras tridimensionais , estabelecem espacialidades  dinâmicas, poéticas e sugestivas que fazem o olhar oscilar de uma forma para outra,  propondo reflexões, destacando similaridades ou confrontos. 

Autor: Eliseu Visconti 
Com ênfase na produção artística do século XIX,  e portanto nas    figuras representadas segundo  os cânones das academias de belas artes que pontificavam na época, a mostra inclui também representações de outros períodos que vão desde um magnífico retábulo gótico  de madeira com relevos representando cenas do novo testamento, até alguns exemplares do modernismo  e do pós-moderno representado por obras de Lindote, Paulo Gaiad, Rubens Oestroem e Schwanke.
Essa preciosa coleção que possui varias peças que poderiam figurar no acervo de qualquer museu de arte do mundo, começou a ser formada ainda na juventude do renomado médico Marcelo Collaço.
Frequentador do atelier de Martinho de Haro   enquanto ainda era estudante, tornou-se seu amigo assim como de seus filhos Martim Afonso e Rodrigo. Em certa ocasião, Marcelo   foi presenteado com uma obra do mestre, adquiriu outras e acabou tomando  o gosto do colecionismo.  Com um feeling natural para descobrir obras relevantes, foi cada vez  educando  e aprofundado  mais o olhar,  já por natureza sensível, inteligente e perspicaz.  Assim, o que de início era o exercício do simples prazer de adquirir e conviver com as obras, foi aos poucos transformando-se pelo acerto das aquisições  numa da mais importantes coleções de arte do Estado.
Frequentador assíduo de galerias, ateliers e museus,  Marcelo ficou amigo de vários artistas, marchands, leiloeiros e colecionadores de todo o país.
Sempre atento,  garimpando obras representativas que estivessem disponíveis no mercado, com paixão,  dedicação e zelo,  formatou a coleção da qual fazem parte as obras que o MASC está expondo até março do próximo ano.
Esse recorte obviamente não se pretende completo, mas obras significativas de diversos períodos estão expostas,  propiciando uma rara oportunidade  aqui em Santa Catarina para  que estudantes, artistas e público em geral possam,  através de um contato direto com as obras originais da coleção,  pesquisá-las, apreciá-las e estudá-las com atenção.

A viagem começa pelo gótico, presente com um magnífico retábulo de altar esculpido em madeira com cenas do novo  testamento. O renascimento italiano está representado neste conjunto  por uma pintura da ‘Virgem com o Menino e Santos’, de Giiovani di Pietro, da escola de Perugino. Restaurada recentemente.  A apreciação dessa obra merece por si só várias visitas ao MASC.



A arte e consequentemente as  representações da figura humana no período medieval estavam  atreladas a igreja católica que impunha seus códigos e as suas regras de representação sacra.
Com a redescoberta da antiguidade clássica no renascimento,  a figura humana passou a ser representada  com mais liberdade e o nú ressurge nas cenas mitológicas até obter  autonomia da representação, tornando-se um dos temas mais importantes de praticamente todos os períodos  da história da arte que se sucederam.
No barroco,  a política da contra reforma  convoca novamente os artistas para preencherem   os espaços dos templos e oratórios com figuras de santos e cenas  religiosas.                    Diversas  esculturas desse período  executadas em madeira ou terracota  podem ser vistas na coleção. Destacam-se dentre as belíssimas  obras um São Gabriel, uma Nossa Senhora de madeira, e um São Roque missioneiro. Esse conjunto, exposto de maneira a formar  os vértices de um triângulo  virtual, pela iluminação e posicionamento das peças, cria um dos efeitos mais  belos de toda  a requintada montagem do Sensos e Sentidos:


 Outro grupo que impressiona pela maneira como foi exposto,  é o conjunto formado por uma série de pinturas sacras de diversos períodos, ladeando o espaço central  que tem num lado um esplêndido crucifixo  português de madeira, prata e marfim e de outro um oratório recoberto de pinturas barrocas. Posicionados frente a frente, criam uma tensão visual  na linha que se estabelece entre um e outro dos pontos focais. Interceptada por outra linha virtual, sinalizada em sua  extremidade por uma bela  escultura de Nossa Senhora,  essa  impactante montagem das peças sacras,  sugere,  no cruzamento  de seus eixos,  o transepto da arquitetura religiosa,  direcionando  o olhar para o ponto principal da cena que é  Crucificado.



Distribuídas  nestes e em alguns outros locais da mostra, essas imagens barrocas com seu pathos  e êxtases místicos, fazem  um contraponto com a laicidade das representações artísticas dos outros períodos. São igualmente notáveis  duas pinturas sobre cobre de pequeno formato representando Santa Luzia e o Êxtase de Santa Tereza, um batismo de Cristo do Séc. XVI de Toussaint Dubreuil, um óleo sobre madeira de Bartolomeo Passerotti  Séc. XV e uma entrada em Jerusalém  da escola flamenga do Séc. XVI.



Outra obra sacra que se destaca, é um glorioso São Sebastião espanhol do século XVII, esculpido em madeira  policromada. 






Colocada  logo na entrada da mostra, a direita de quem entra,  essa escultura pontifica no espaço, expondo em sua silenciosa grandeza  a beleza e a dignidade do corpo humano desnudo, tão  cultuada na antiguidade clássica, redescoberta pelo humanismo renascentista e no momento, em nosso país, vilipendiada por representantes de um retrocesso histórico que pretende impor a arte um retorno a censura inquisitorial das trevas medievais.

As representações acadêmicas da figura humana que predominaram no país após a chegada da missão francesa trazida por D.João VI,   integram o maior conjunto da exposição que inclui obras de Henrique Bernardelli, Oscar Pereira da Silva, Rodolfo Amoedo, Pedro Weingärtner, Pedro Américo, Belmiro de Almeida, Aurélio Figueiredo, Almeida Júnior, e outros.
Algumas  pinturas,  como a  ‘Menina Pintora’, de Pedro Américo, e o nú masculino de Eliseu Visconti destacam-se no conjunto de obras que reúne retratos, cenas de gênero e estudos.
A série de desenhos de Victor Meirelles, com estudos de trajes italianos, é um dos pontos altos da mostra.  O  impressionante virtuosismo dessas aquarelas comprova  que, sem dúvida,  esse artista catarinense foi o melhor desenhista nacional no século dezenove.

Conjunto de aquarelas de Victor Meirelles
Um retrato de Eliseu Visconti de sua esposa Louise, com sua luz e pinceladas impressionistas, mostra como Visconti soube compreender a essência desse movimento inaugural do modernismo.

Muito  interessante também a figura feminina de autoria do artista negro Rafael Frederico.
Várias pinturas de artistas europeus  abordando a figura humana como tema estão incluídas na  exposição. É o caso das duas obras de Othon Friesz, professor do nosso maior modernista Martinho de Haro. De Friesz estão expostas uma surpreendente Joana D´Arc e um pequena tela tendo como tema ‘A Trapezista’. 



Martinho, cujas obras constituem um dos núcleos centrais da coleção de Marcelo, participa com vários trabalhos, como o ‘Baile Rural’ e  o ‘Tomador de Chimarrão’, de sua fase de São Joaquim, ‘Mulher Sentada’,  de seu período de formação, uma cabeça de jovem, pintura de mulata com a qual obteve um prêmio na academia, e um nú feminino reclinado,  forte e expressivo que pode sem favor incluir-se entre os melhores nús produzidos pelo modernismo  brasileiro. São interessantes como documento um  estudo de modelo masculino sobre papel  feito na academia por Martinho, colocado ao lado de uma sanguínea  de Eliseu Visconti com o mesmo motivo.


Com a técnica da sanguínea há  também um auto-retrato de Ismael Neri. Uma série de desenhos de Rodrigo de Haro  em branco e preto de sua fase influenciada por Beardesley  expostos ao lado de duas pinturas de grande formato que evocam a síntese da gravura japonesa.
Dão sequência as obras expostas  a tela  de Aurélio Figueiredo ‘Dama na Rede’,’ Tropeiros’, de Malinverni,  uma triunfal ‘Entrada de Constantino em Roma’, litografia de Gerard Audran a partir Charles le Brun, o  nú masculino de Eliseu Visconti,  que serviu de capa para o convite da mostra, além de muitas outras obras, todas merecedoras de atenção e interesse.  O  ideal é que se faça mais que uma visita ao museu,  pois cada trabalho solicita uma atenção especial para poder ser fruído em toda a sua totalidade.

Autor: Elke Hering
A escultura modernista está representada pelos dois parceiros de Niemeyer, Bruno Giorgi e Ceschiatti.  De Bruno de Giorgi há um delicioso fauno em bronze e de Ceschiatti, uma figura feminina reclinada, que funciona como um dos referenciais do espaço expositivo. Há também duas esculturas em bronze da artista gaúcha Sonia Ebling. Elke Hering  está representada por um belíssimo  bronze com influência de Henry Moore, além de outra escultura em metal e duas peças  em cristal.

Bruno Giorgi

Num exemplo de consciência cultural o casal Marcelo e Jeanine Collaço com magnanimidade, além  da realização da mostra SENSOS E SENTIDOS   que possibilita  ao público acesso a seu precioso acervo,  doou ao Masc uma importante obra de Eduardo Dias, o nosso douanier Rousseau , que faz a ponte entre a obra de Victor Meirelles e de  Martinho de Haro.
Belo exemplo de cidadania que Oxalá seja  seguido por outros colecionadores.
A Cultura Catarinense agradece.

Marcelo e Jeanine Collaço


* Fotos das obras de arte da matéria são de autoria de  Rodrigo Sambaqui.









sexta-feira, 3 de novembro de 2017

ANASTÁCIA – ' IMPERATRIZ ANTROPÓFAGA': Mais uma Obra Antológica de Fernando Lindote


A imperdível mostra Sensos e Sentidos, que reúne parte da coleção do casal Jeanine e Marcelo Collaço, exposta até março de 2018 no MASC (comentarei no próximo blog), teria como um dos destaques a pintura Rainha Antropófaga,  de autoria de Fernando Lindote. 
Essa obra, contemplada com o disputado prêmio Marcantonio Villaça, encontra-se atualmente exposta em Brasília. Adquirida anteriormente pelo colecionador catarinense Marcelo Collaço, a obra acabou não voltando para Santa Catarina por insistentes pedidoS do crítico Paulo Herkenhoff que considerou imprescindível sua presença na itinerante que ocorre em Brasília. 
Se por um lado é uma pena que o público catarinense não possa apreciá-la de imediato, por outro lado é motivo de orgulho para todos nós o fato de que a representatividade e importância dessa pintura seja nacionalmente reconhecida. Não faltará oportunidade para que num futuro próximo, assim que encerrar-se a itinerância, possamos conhecê-la e admirá-la pessoalmente.
Há algum tempo, Lindote vem fazendo uma reflexão sobre o significado de alguns ícones representativos da identidade nacional, personagens como Zé Carioca, Macunaíma, monumentos arquitetônicos como a Praça dos três Poderes de Brasília, nossas exuberantes florestas com sua exótica flora tropical, imagens de cartão-postal como o Corcovado, o Pão de Açúcar, etc.
Agora, dando sequência a essas indagações sobre ícones da nossa identidade, forjados, fabricados artificialmente ou naturalmente surgidos através dos tempos, Lindote recorre à figura mítica da escrava Anastácia, um personagem recoberto pelo mistério das lendas e mitos que se criaram em torno de sua lendária figura. 
Pouco importa se as informações que chegaram até os dias atuais são historicamente verdadeiras ou não, até porque a história não costuma registrar a existência dos vencidos e oprimidos, preferindo enaltecer a memória dos “heróis” da classe dominante, vitoriosos donos do poder que sempre deram as cartas, mesmo sendo na maior parte das vezes apenas tiranos cruéis corruptos e desumanos. Anastácia é um dos exemplos de resistência contra a os horrores dos abusos, crueldades e desumanidade com que são tratados os seres e povos oprimidos por sistemas como esse em que vivemos. É justamente pelo que ela representa em relação a tanta opressão que sua memória se mantem cada vez mais inspiradora e viva.
As elites do país se sentem incomodadas ao abordar questões relativas à escravidão, e esquecem com facilidade as abominações do sórdido sistema escravagista que durante três séculos existiu no Brasil, cuja riqueza esse povo vilipendiado e injustiçado ajudou a construir, mesmo tendo sido sempre totalmente impedido de desfrutar de seus benefícios o  que de maneira geral continua ocorrendo  até hoje.
Para milhões de criaturas excluídas, a figura de Anastácia representa os sofrimentos e a luta do povo negro que continua resistindo às mais diversas formas de discriminações físicas e psicológicas.
A máscara de flandres que carrega na boca e a algema de ferro grudada no pescoço, representam bem a brutalidade bestial dos algozes que fizeram de sua vida um martírio.
Com seu olhar firme, penetrante, ANASTÁCIA demonstra que mesmo em seu martírio não se deixou vencer pelas perturbações e crueldades do mundo. O seu semblante seguro reflete a força e o vigor de sua superioridade interior, proveniente de um coração amoroso impermeável à maldade a qual foi submetida. Anastácia representa o sonho divino de uma existência humana mais digna na terra e é nesse sentido que é venerada como verdadeira santa pelo povo que vê nela uma força capaz de fazer curas, milagres, graças, tais são as vibrações desse poder que seu semblante transmite. Poder oriundo da bondade, da integridade, da fé e da certeza que seu povo um dia conquistará o direito de crescer junto com esse país, usufruindo plenamente de tudo de bom que ajudou a construir.
Gloriosa em seu manto protetor, Anastácia vivenciou o universo da dor, dos pesadelos, crueldades e perturbações alheias. Tentaram fazer dela uma escrava humilhada e vencida, mas não conseguiram derrotá-la. Ela, em sua grandeza íntegra e heroica em momento algum comportou-se como tal. Eternizada no coração do povo, digna, altiva e majestosa, Anastácia, com requintado buque de orquídeas sobre a cabeça, ressurge na tela de Lindote, luminosa e coroada como a legítima IMPERATRIZ DO BRASIL.