segunda-feira, 28 de maio de 2018

"Um pouco de historia: OS PRECURSORES DA CONTEMPORANEIDADE EM SC"

A comemoração dos setenta anos do MASC traz ao público um diversificado recorte da produção local contemporânea, numa próxima oportunidade comentaremos detalhes da mostra intitulada Desterro Desaterro, por ora vamos desaterrar algumas memórias do movimento ocorrido a partir dos anos setenta, movimentos que precederam o momento atual e que construíram as bases sobre as quais se assenta a produção atual da arte praticada em Santa Catarina.
As mudanças de paradigmas em qualquer setor não acontecem por acaso de uma hora para outra. No campo da arte não poderia ser diferente, assim o que podemos apreciar hoje é fruto do esforço de varias gerações, que a partir dos anos setenta foram criando pouco a pouco as bases que serviram de alicerce para os novos tempos que se anunciavam, de forma tímida na obra de alguns, de forma virulenta e impactante na de outros. 



“Parque de diversões” – Obra de Janga, que fazia parte, juntamente com o ‘Oratorio’ de Max Moura, da individual apresentada no hall do TAC em 1969. Essa obra, felizmente não destruída, faz parte atualmente do acervo do MASC


A luta não foi fácil muita coisa perdeu-se no esquecimento, mas o importante é que ficou decididamente para traz o anacronismo provinciano, que por muito tempo asfixiava qualquer tentativa de romper a inércia e o comodismo. A coisa estava num ponto que o próprio Harry Laus irritado com o que predominava na pintura local sugeriu num de seus textos que os artistas catarinenses deveriam se unir e abrir de uma vez uma quitanda, tal a profusão de naturezas mortas, vasos de flores, peixes, aves e coisas tais que predominavam. Quando não era isso o que se via nas telas eram casarios coloniais, retratos ou narrativas predominantemente anedóticas. Quem ousasse sair fora dos padrões era hostilizado ou simplesmente ignorado. Mesmo nos setores mais esclarecidos havia uma resistência muito grande em relação a obra aberta.



Capa do catalogo da exposição que foi censurada na galeria da então Radio diário da manhã e apresentada no hall TAC.


Gravura em metal de Max Moura, com mesmo tema – Varal – que inspirou sua intalação na mostra do teatro Carlos Gomes, em 1969


Lembro bem quando por ocasião de uma mostra nacional de escultura realizada por Lindolf Bell no Teatro Carlos Gomes de Blumenau, o escândalo que a obra exposta por Max Moura criou. Fomos a Blumenau eu Max e Romulo Azevedo para montar a instalação do Max que consistia num varal com camisetas do Flamengo, o detalhe é que a proposta de Max exigia que as camisetas estivessem molhadas. Assim logo que chegamos encharcamos as peças e montamos o varal, de repente surge furioso o curador da mostra exigindo que o Max desmontasse a obra, pois estava pingando nas esculturas de Vasco Prado.  A instalação só permaneceu graças a intervenção de Elke Hering que sugeriu que Max afastasse um pouco o varal para não interferir nas esculturas. Decidimos não ficar para a abertura pois não tinha clima, quando já  estávamos entrando no carro, o Bel veio correndo atrás dizendo que o Valmir Ayala, então crítico do Jornal do Brasil, queria falar com Max pois considerou seu trabalho a melhor peça exposta.
A coluna de Ayala no JB dedicou meia página ao trabalho do Max. Por essa época eu o Jayro Schmidt e o Max Moura criamos o Grupo Nossarte que incluiu também outro nomes, este foi o primeiro grupo pós moderno de SC ,como era um grupo com ideias próprias foi inevitável um certo choque com o que havia por aqui.


“Oratório” – Provavelmente o primeiro objeto da Arte Catarinense. Essa obra, doada ao MASC foi posteriormente queimada sobre a alegação de estar “infestada por cupins”.


Na sequencia fomos morar em São Paulo eu e o Max, o Jayro ficou por aqui ‘segurando a onda’ sozinho. Max antes de mudar-se doou ao MASC uma obra sua tridimensional que foi um dos primeiros objetos, senão o primeiro da arte catarinense. Alguns anos depois soubemos que o mesmo foi queimado, pois segundo o diretor do museu da época Aldo Nunes a peça estava com cupim. Provavelmente nem fotografaram a obra antes de destruí-la, e pelo que sei nem avisaram o autor que iriam queima-la. A obra consistia num grande oratório de madeira com fundo de espelho tendo em primeiro plano um manequim e uma rosa de plástico. Até hoje não entendi como deu cupim num objeto de plástico.

Esses episódios resgatados do tempo dão uma leve ideia do conservadorismo reinante, que não só  hostilizava claramente qualquer  tentativa de renovação que batesse de frente com  o que os mandarins locais preceituavam como arte, como fazia o possível e o impossível para impedir que novas propostas se afirmassem. Alguns poucos entendiam e apoiavam o que estávamos tentando fazer, como era o caso de Carlos Humberto Correia, Pericles Prade, Vecchieti e Pléticos, mas de maneira geral o que havia por aqui era uma sociedade totalmente refratária ao novo. O jeito era ir embora em busca de lugares mais oxigenados, praticamente todos o fizeram, alguns retornaram anos depois outros não, como foi o caso de Ivens Machado que só voltava para visitar seus familiares e até hoje, mesmo tendo sido um dos artistas nacionais de maior relevância,  jamais foi reconhecido em sua cidade natal.
Na década de oitenta, com o retorno para Santa Catarina de diversos artistas que tinham migrado para centros maiores do pais ou do exterior,  a classe artística organizou-se através das entidades recém criadas e foi feito todo um trabalho estratégico visando atualização da arte catarinense. Aconteceram a partir dai as primeiras mostras contemporâneas como as de arte postal, importante movimento da época, as primeiras instalações, mostras de arte na rua, vídeo-arte, out-doors, cursos de arte contemporânea as primeiras performances etc.


“ITACOATIARA” – Obra de Janga que fez parte da mostra INSTALARTE, a primeira mostra de instalações em Santa Catarina, apresentada na ACAP, no prédio da alfandega, no ano de 1985.


Começaram a surgir nomes que viriam a se firmar nacionalmente nos anos subsequentes. Por essa época existiam os salões e nossos artistas contemporâneos começaram a despertar a atenção da crítica nacional, ocorreram as primeiras premiações neste circuito. Essa verdadeira epopeia que merece um dia ser relatada em detalhes, culminou no inicio dos anos noventa com o Panorama do Volume mostra organizada pelo MASC dirigido então por Harry Laus. Laus tinha sido colocado a frente do MASC por reinvindicação dos artistas e não decepcionou, de formação basicamente modernista, teve de início uma certa dificuldade de entender o que estava sendo proposto. Num jornal ACAP intitulado “Retoque” declarou:
”No MASC tento fazer o possível para acompanhar o que Janga faz na ACAP”.


“ORUN” – Instalação de Janga premiada no 40º salão paranaense em 1983.


Inteligente, polemico, criativo, competente e sem medo de expressar sua opinião, logo passou a fazer parte do movimento de renovação que acontecia de forma irreversível tendo sido um dos seus principais incentivadores. O “PANORAMA DO VOLUME” que o MASC apresentou ao público em 1990 nasceu de conversas entre eu ele e Doraci Girrulat onde colocávamos sempre a necessidade de propor novos desafios aos nossos artistas. Não queríamos que a exposição programada fosse apenas mais uma mostra de escultura como estava planejado, queríamos tratar a questão da obra com limites borrados, nem escultura nem pintura: objeto. Harry argumentava que para ele tudo era objeto, depois de muita conversa chegou-se a um consenso e o nome Panorama do Volume foi proposto e aceito.


“Sagração da Primavera” – detalhe da instalação de Doraci Girulat, apresentada no MASC nos anos 90 e recentemente incluída na mostra de arte contemporânea catarinense no mesmo Museu.


A mostra foi um divisor de aguas e consolidou todo o esforço que vinha sendo desenvolvido no sentido de buscar uma linguagem menos defasada em relação ao que vinha se fazendo no resto do país.
Segundo a critica paranaense Adalice Araujo que veio visitar a exposição do MASC, a arte catarinense tinha atingido um nível que a colocava em pé de igualdade com o que de melhor estava sendo apresentado nas grandes mostras internacionais. Transcrevemos a seguir trechos do texto publicado na Gazeta do Povo de Curitiba na coluna de Artes Visuais de Adalice do dia 6 de janeiro de 1991.


No Museu de Arte de Santa Catarina o “Panorama Catarinense do Volume 90”
O critico de arte Harry Laus, diretor do museu de arte de Santa Catarina é o idealizador e curador do “Panorama Catarinense do Volume 90”. O projeto, dos mais arrojados, reúne 37 entre os mais representativos artistas da arte catarinense contemporânea.
A busca da contemporaneidade, a defesa da ecologia, o grande predomínio das instalações, constituem as principais características do panorama 90.
Graças a habilidade de uma eficiente curadoria, excelentes propostas como a de Janga, Jaime Reis, Adalto Althoff, Schwanke e Marcos Rück mantem a qualidade da mostra, esses artistas, propondo novos rituais não esquecem a lição de Kaprow “A linha de demarcação entre a arte e a vida deve ser conservada tão fluida quanto possível.” Suas obras são dignas de serem apresentadas tanto em grandes mostras nacionais quanto internacionais.
As várias propostas
FERNANDO LINDOTE – Logo no saguão interno do CIC uma instalação de Lindote adverte o espectador que aquela não é uma exposição comum: muito pelo contrario, a tentativa de renovação e muito enigma  estão no ar.
DORACI GIRRULAT – Ao se entrar na sala de exposições do MASC, a primeira proposta com que o expectador se depara é com “Penélope Noturna” de Doraci Girrulat. Servindo-se de uma tela metálica que – aludindo a rolos de urdidura – se enrola nos dois extremos de um suporte que funciona como mesa de tear e, embora esticada sobre a mesma, desfia-se na extensão entre essa e o chão; a autora revive a mitologia grega mesmo em plena era pós-industrial. Mesmo lançando mão de materiais gerados pela indústria é possível identificar na imagem por ela criada a foto de uma cesta sendo tranada com talas de arumã por uma índia Tukuna (AM), que Rita Caurio publicou em “Arte têxtil no Brasil”. Simplicidade e surpresa são o tônico de “Penélope noturna”, rica em simbologia.
ISABELA SIELSKI – Também intrigantes são os grandes e enigmáticos volumes cerâmicos de Isabela Sielski sugerindo o empacotamento de Man Ray ou “Quase corpos”.
JANGA (JOÃO OTAVIO NEVES FILHO) – O ponto alto do “Panorama Catarinense Volume 90” é atingido pela instalação “Shekinah”, seu autor que vem se notabilizando por conseguir traduzir em linguagem contemporânea a tradição ilhoa, aqui consegue não so propor um movimento vivo à ecologia, como transpor o local ao universal. Servindo-se de materiais nativos como folhas, serragem, bambu, papier mache e terra, ele assume a tecnologia cabocla. Penetrando a fundo na simbologia básica do triangulo e do Trimurti indiano Janga revive o ritual, o mito e o espaço. Ele da um raro exemplo de dominar a linguagem da instalação. Sem cair no anedótico e, por outro lado, sem obstruir os canais de comunicação com o espectador, o artista sabe preservar a poética e o necessário enigma.



“SHEKNAH” – Instalação de Janga que participou do panorama volume do MASC em 1990.

ELVO BENITO DAMO – assume o precário, a volta as origens. Em suas icônicas armações de madeira, presentifica totens ancestrais.
RUY CESAR BRAGA – em sua instalação “zona industrial”, o artista consegue unir um clima catastrófico à critica robotização imposta pela sociedade de consumo. Suas esculturas de metal ou bonecos metálicos são materialização de historia em quadrinhos temperada com Science Fiction.
ADALTO ALTHOFF – suas excelentes propostas que lembram os irônicos objetos de Paolo Ridolfi contem uma mitologia pessoal.
JAYME REIS – Sua instalação “Apetrechos Açorianos Deparáveis”, entre as mais interessantes obras desse panorama é digna de figurar ao lado de Janga através de objetos de objetos de madeira e utilizações de signos diversos ele recria com rara dignidade a memoria açoriana. As formas propostas de absoluta contemporaneidade são validas por si, sem necessidades de recorrer a subterfúgios.  
Mereceria um artigo a parte alguns entre os artistas convidados, como Luiz Henrique Schwanke, com original projeto constituído de 25 lâmpadas de mercúrio e espeto de churrasco comprovando a sua capacidade de trabalhar com energia cambiante como a luz, que consegue unir a geometria espacial; Berenice Gorini e seus têxteis, com sua capacidade de se impor por sua sacralidade ritual; Elke Hering, pelo profundo simbolismo que extrai da natureza; Marcos Rücke, sem esquecer as qualidades construtivas, consegue renovar a visão pós-moderna.”


Instalação de schwanke feita com luz, espetos de churrasco e reprodução de Caravaggio.

Sobre esse artigo de Adalice Araújo Harry Laus em sua coluna de artes plásticas do jornal o estado de 16 de janeiro de 1991 comentou:

"Aqui em Santa Catarina cuja arte Adalice conhece a fundo, ficaremos a dever-lhe mais esse brilhante trabalho, a ser acrescentado a importância do livro “Mito e Magia na Arte Catarinense” publicado por nosso governo em 1979."

Para os que estão chegando agora é bom saber que nem um de nós é o ponto zero da história e que as coisas que aí estão são frutos do trabalho de muitos. A renovação das artes visuais que partiu da capital espalhou-se pelas demais regiões do Estado, em Rio do Sul Lygia Neves deu importante contribuição estruturando a associação de artistas recém criada, assim como fez Edson Machado  em Joinvilhe, em Blumenau além da atuação didática da FURB e da Casa da Cultura, Elke Hering  e outros artistas continuaram desenvolvendo seus trabalhos, em Chapecó é criado um curso ligado a universidade regional, na produção artística do oeste  destacaram-se Sandra Abelo, Lenice Weissman,Elisa Iop e Ednei Brizot com um trabalho consistente e atualizado, em Lages Clenio Souza teve sua arte reconhecida nos salões locais, em ITAJAI Age Pinheiro Ane Kronbauer e outros ajudaram com sua atuação a  estruturar a Casa da Cultura e o curso universitário  de artes. Com a criação do Bacharelado de ARTES da UDESC e de outros cursos no Estado, a organização da classe artística nas décadas de  oitenta e noventa, assim como  com o circuito estadual dos salões estaduais que culminou com a criação do Salão Nacional Victor Meirelles, o movimento de renovação consolidou-se, deixando definitivamente trás os que se recusaram a acompanhar o trem da história. Atualmente com criação de diversos micro centro culturais e coletivos que a cada dia vão surgindo, principalmente na capital do Estado, as oficinas laboratórios e espaços expositivos vão mostrando o resultado dessa movimentação, muita coisa está sendo conquistada e o amadurecimento do setor é evidente, necessário porém é que os artistas não cruzem os braços, defendam conquistas já conseguidas e pressionem para que cada vez se ampliem  mais os horizontes e o alcance da arte feita em Santa Catarina. É necessário coragem paixão e persistência pois as forças retrógradas entricheiradas na breguice  no marasmo e na mediocridade, estão sempre de plantão tentando  inutilmente reconquistar o espaço e o berço esplendido onde dormitavam seus sonhos parnasianos.

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